A casa amarela - Dropando Ideias

A casa fica no melhor bairro da cidade, em 5 minutos você vai ao banco, passa no mercado, olha o prato-do-dia no self-service local, caminha na praia e lê um livro debaixo da segunda maior e mais velha árvore da parte habitada da cidade. A esquina mais famosa do bairro. A casa, conhecida como “A casa amarela”; a casa número 500.

Quando sofreu o primeiro assalto, mandaram aumentar o muro. Da rua, se vê a gigantesca aceroleira com as frutas que, hoje em dia, são amargas. O quintal foi ladrilhado no 2 dia da chegada dos moradores que ficariam 7 anos naquela casa; deixando perto dos muros, um pequeno espaço para flores e arvorezinhas.

A porta da frente não abre, e nunca abriu, facilmente; por isso se entra pela janela. O 6° dos 16 degraus da escada de madeira faz um rangido parecido com miado de gato quando se pisa no meio. Uma das madeirinhas da grade do corrimão esta solta, apenas encaixada ali. Do lado de fora da janela do 3° quarto – a direita da comoda de madeira dos anos 80 -, estão rabiscadas frases de uma menina de 10 anos. No mesmo quarto, embaixo do interruptor de luz, tem um pedaço de fita adesiva colado a 4 anos lá, sabe se lá por quê. O ventilador desse mesmo quarto não funciona; as maritacas que moravam (e moram até hoje) no telhado roeram toda a fiação.

Na frente do quarto-das-frases-rabiscadas-e-ventilador-pifado, fica o quarto de um menino cujo banheiro já serviu de abrigo para a menina-que-rabisca-frases-na-janela, durante uma chuva tenebrosa com direito a apagão geral da cidade. No quarto do outro lado do corredor fica o 1° quarto; a porta esta rachada, culpa de um pesadelo que o menino-do-quarto-do-banheiro-abrigo teve quando pequeno, que levou-o a chamar a mãe no meio da noite.

Nesse mesmo quarto da porta-rachada-por-pesadelos existe uma sacada que, a poucos dias, serviu de camarote para o espetáculo da banda pingo-de-chuva-e-raio-trovão. Existe também um banheiro com ralo-que-mia quando a aguá do chuveiro chega ao chão. A janela a direita da cama de casal desse quarto tem vista para o teto da varanda do andar de baixo, onde varas de pescas de bambu – agora apodrecidas – descansam.

Voltando ao andar de baixo, na sala-da-porta-difícil-de-abrir habitam um armário de tv, uma mesa de jantar e um armário de madeira.

O armário de tv tem riscos de canetinha nas portas de vidro; obviamente obras de arte do menino-do-quarto-do-banheiro-abrigo e da menina-que-rabisca-frases-na-janela. Dentro dos vidros rabiscados, livros antigos de matemática, historia, física e renomadas historias (muitas da famosa Coleção Vagalume) esperam para serem lidas pela menina; e em cima desse armário, uma miniatura de Ferrari do pai-dos-pequenos-artistas-de-portas-de-vidro aguardava sem pressa o dia em que o pequeno artista o levaria-o para brincar no quintal-ladrilhado.

A mesa de jantar era extremamente chique. As cadeiras com estofado bordado, a madeira com acabamento perfeito, uma mesa cara que tinha custado a ser comprada. Uma pena que um vazamento de água que ocorreu durante uma viajem tenha estragado os pés da mesa e das cadeiras. Deixando-os mais brancos que o resto do móvel, e descascando-o.

O armário de madeira era um mini-atelie. Dentro haviam pinceis, pequenos cavaletes, telas, tintas, ladrilhos para mosaico, potes de argila-molhada e biscuit. Coisas relacionadas a arte que eram um passa-tempo da mãe da menina-que-rabiscava-frases-na-janela e que, por certo tempo, foi dela também.

O banheiro dessa tal sala tem parede roxa. Ou tinha, a água sanitária deixou algumas partes dela azul. A pia desse banheiro ainda deve ter manchas de sangue na parte de baixo; um pequeno acidente com o menino-do-quarto-do-banheiro-abrigo. O espelho, antes muito alto para a menina-e-o-menino-da-casa-amarela, não habita mais a parede; deixando para se olhar, apenas um prego solitário enferrujado.

A cozinha já não é mais a mesma. A mesa de vidro trocou umas 5 ou 6 vezes desde que chegaram lá. Os copos agora mofam dentro do armário, deixando um cheiro ruim quando se bebe água. O mármore da pia, contudo, continua igual. A porta que da para a varanda fica boa parte do tempo fechada, forçando a saída para o lado de fora apenas pela porta de vidro da sala – que até certo tempo tinha quebrado por completo, deixando a casa aberta 24hrs.

A areá de serviço, que fica ao lado do armário-dos-copos-mofados, já foi o lar de um simpático gato que já não esta entre a tal família. Tal como o canil de um certo muito corajoso cão, e a casinha de um pequeno e sentimental cãozinho – que, eu garanto, deixou muita saudade.

A piscina, em frente à porta-de-vidro-a-pouco-24hrs-aberta, agora não tem mais crianças e seus amigos brincando. Não há churrasco de sábado, não há marco-polo, não há brincar-de-sereia nem o pai-dos-pequenos-artistas-de-portas-de-vidro gritando “Parem de pular! A água esta espirrando pra fora!” ou “Desliguem essa mangueira! Já não tem água suficiente nessa piscina?!”.

Não é só isso que não há mais. Não há mais menino-e-menina-da-casa amarela, nem decoração bonita e pessoas passando na rua e dizendo “Que bela casa!”. Não há mais pai-dos-pequenos-artistas-de-porta-de-vidro, muito menos a mãe dos pequenos. Da janela, não se vê mais os gatos peludos e miantes de antes. Não se ouve mais o U2 tocando alto no som da sala. Não existe mais Casa Amarela. Seu coração parou de bater, e sua beleza já não é a mesma.

A casa amarela, apodreceu e agora é cinza.

Está é mais uma crônica escrita por Letícia Wexell. Você pode encontrar todas elas clicando aqui.

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