Como a crueldade da internet mudou a minha vida para sempre - Dropando Ideias

Como a crueldade da internet mudou a minha vida para sempre

Um desabafo sobre cancelamento e outras dores

Pessoal

Noite de sábado. Um impulso caótico causado por pouco mais de dez palavras em um comentário, e pronto: uma crise de ansiedade. Uns poucos segundos de assimilação antes de tratar. Umas três inspirações forçadas para não começar a chorar.

Talvez agora que passou eu possa falar sobre isso. Agora que fazem anos.

De novo eu vejo ela ali na minha frente. Uma Letícia de quinze anos (talvez até menos) com energia de sobra e vontade de compartilhar e conhecer o mundo. Faz dez anos que não a vejo. Ela tem sonhos, muita disposição, e uma criatividade que hoje em dia eu invejo a ponto de me deixar enjoada. Eu sei que ela está começando a ficar decepcionada, mas eu não sei o que fazer.

Eu queria poder falar com ela. Chama-la para tomar um chá, já que café ainda causa muita ansiedade nela, e pedir um conselho. Mas não posso. Não dá. Eu sou a mais velha, não era para eu saber ajuda-lá? Em um segundo impulso, me lembro que pelo menos tenho os retalhos dela deixados para trás. Corro o mouse pela tela. Textos, vídeos, podcasts, fotos, tweets e lembranças que se encaixam em um desenho do que ela era. Talvez a gente possa conversar assim? Retalhos do que eu era.

O problema é que… Esse é o problema.

E começo a hiperventilar de novo.

A parte mais assustadora de ser GenZ talvez seja essa, e ninguém tem falado sobre isso. A primeira geração nativa da internet… A única – até agora – que não tem um antes. Será que eu postei alguma besteira aos 13 anos que hoje me faria ser cancelada? E se usarem aquela minha foto para alguma montagem? Espera… Eu falei mesmo isso naquele vídeo?

Eu devia apagar tudo? Ah, espera, eu trabalho com isso.

Releio tudo que escrevi. Talvez me encontre em mim mesma, mas o medo latente não vai embora. Deve ser besteira minha, certo? Talvez eu tenha só direcionado a minha paranóia para outro lugar: agora, eles stalkeiam meu perfil em vez de me seguirem na rua. As pessoas ligam tanto assim para o que as outras pensam? As vezes sinto que estamos todos tão ocupados scrollando feeds e julgando opiniões que algoritmos nos entregaram que até prendemos a respiração.

“Postar na internet é como estar pelada numa praça gritando”, me falaram em um dos piores dias da minha vida. Eu não sei se isso é verdade, mas hoje sinto como se fosse. A crença as vezes é uma prisão. Eu queria que não fosse, porque não era isso que a Letícia achava, e isso tornava as coisas mais fáceis. Se eu cresci, porque sinto que ela era muito mais inteligente, feliz, confiante e vibrante do que eu? Estou ficando velha? Pensei que esse processo talvez levasse o brilho do meu corpo, não da minha alma. Não dessa forma.

A COVID mexeu com meu cérebro. Será que tem algo a ver com isso também? Alguns dias, sinto que observo objetos pela casa e tenho dificuldade de lembrar seus nomes. Não preciso me lembrar do seu número de telefone, é só adicionar a agenda. Me lembro do começo de Firewatch e tenho medo que de repente eu não seja mais eu quando acordar. Infelizmente não é de todas as coisas que eu esqueço.

Lembrar de Firewatch, o jogo de computador, me faz lembrar de vários monitores que a gente tinha em casa; estampados com wallpapers do game com uma paleta de cores do por do sol. Um dos monitores, quebrado, eu entreguei para um amigo que sempre penso em como eu queria que fosse mais próximo de mim. Talvez me falte desabafar mais com os meus amigos. Ser direta. Pedir ajuda. Não esconder minhas cicatrizes em noites trabalhando até tarde e tinta de cabelo.

Estou apavorada porque não sei o que fazer se a eu do presente odiar o que a eu do passado amava. Sendo honesta, eu não amo particularmente outra coisa; mas não tenho certeza se consigo amar algo que me causa tanta ansiedade. É como se fosse aquela história do Bolo de Amor Mofado, mas mais abrangente e menos Tumblr 2016. Até escrever sobre isso me parece uma espécie de automutilação. Eu quero mesmo expor um trauma, uma dor profunda desse jeito, na internet? Como as pessoas faziam há anos atrás? Arte? Amigos? Se encher de álcool? Eu não sou artista. Meus amigos acham que eu sou a pessoa forte e responsável que tem tudo sob controle. Eu não quero tratar um veneno com outro.

Tem poucas coisas que me arrependo de ter vivido. O resultado da crueldade da internet em primeira mão com certeza é uma delas. Eu não era a vítima – nem do erro, nem da consequência da situação -, mas hoje me sinto como se tivesse acontecido comigo e a qualquer momento eu fosse voltar para aquela situação (muito obrigada por isso, estresse pós traumático). Tanto a Letícia de 15 quanto a de hoje se sentem mal por isso, por que as vezes parece insensível da minha parte. Não seja ridícula, digo a mim mesma, você sabe que o que ele fez foi sim errado e que você não tem direito de se sentir tão mal assim por algo que nem aconteceu com você. O que, quer eu queira ou não, acabou sendo o resultado da crueldade do que era um sonho.

Hoje tento criar oásis de coisas boas numa terra que parece desértica de amor.

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