Sou feita de contornos, vozes e momentos - Dropando Ideias

Ergui o celular mais uma vez. Não para checar novamente as notificações do Instagram ou ver o número de mensagens novas naquele grupo de Whatsapp que eu nem leio o que tanto falam. Não. Queria usar a tela preta para checar de novo meus olhos. Acabei me lembrando daquela série de ficção científica.

Enquanto observava meus próprios olhos – castanhos, por sinal, e um pouco grandes demais para o resto do rosto – pensada no quão alto a minha própria voz falava dentro da minha cabeça.

Por que eu penso gritando? Não acho que essa pergunta sequer faz sentido, por me colocar novamente nesse círculo de gritaria interna. Mas o que importava era o formato dos meus olhos. Eles se erguiam suavemente pelas pontas externas, indicando que eu sorria.

Eu sorria para um espelho preto que na verdade era a tela do meu celular, e entendia muito bem a minha própria felicidade.

Mais cedo, às 18:35, numa cafeteria um tanto cheia demais do centro de São Paulo, eu encarava um rapaz que lia – com fones de ouvido e um cachecol amarelado, um livro que me esqueci de olhar a capa.

A regra é clara: quando você lê na rua, você levanta a capa para os possíveis leitores camuflados ao seu lado. Quando eu encarava o rapaz, ainda não sorria com os olhos.

Levantei o café. Estava quente e o chocolate estava um pouco mal misturado, deixando a sensação de areia na boca. Gostoso mesmo assim. Deixei meus dedos apertarem com um pouco mais de força o copo de plástico enquanto desviava o olhar do rapaz e encarava o gigante relógio de luzes LED pela janela. Chovia bastante.

“Quanto tempo será que vai levar para esse momento passar?”, pensei. Eu estava o tempo todo esperando o momento em que aquele momento que eu vivia passaria, e seria substituído pela sensação – que sempre me assombrava, incontrolável – de não pertencer a momento nenhum. Quando minha voz falava alto demais na minha cabeça (de um jeito ruim) e eu não conseguia distinguir muito bem onde começava o meu próprio corpo e onde terminava. Uma sensação de não ter linhas de contorno que me desenhassem, e eu transbordasse para fora de mim mesma. Perdida.

Tentei fugir do meu próprio pensamento encarando a chuva. E depois o moço-leitor de cachecol outra vez. Alheio a tudo a sua volta, ele usava fones de ouvido sem descobrir que a música ambiente da cafeteria era absolutamente perfeita para o momento. A chuva, o café, as pessoas, a música e o ar refrescado pelo ar condicionado. Tudo levava a essa estranha sensação de que aquele lugar e aquele espaço tempo eram infinitos e cristalinos demais para se quer existir dentro do caos que assolava o mundo naquela semana. Eu me sentia pura. Encaixada no daquele cenário como a última peça de um quebra cabeças. Talvez por isso mesmo ele ouvisse uma música que estava alheia a aquele momento que o universo criára espontaneamente. Talvez aquilo fosse só para mim.

– Posso tirar o seu prato? – Encaro um rapaz sorridente e de lábios finos, escapando do espiral de pensamentos como quem é jogado para fora do mar por uma onda forte demais. Faço que sim com a cabeça e tenho a sensação de dizer “Pode”, mas não tenho certeza se o faço. Ele vai embora com seu avental verde parecendo não notar o meu olhar perdido no salão.

Minutos  mais tarde, sem entender completamente como, eu estou voltando para casa de carro. As vezes as memórias se perdem em mim da mesma forma que eu perco o contorno. O trânsito é grande e eu tenho certeza de que o momento perfeito que vivenciei a pouco realmente não foi real. É mais um truque da minha cabeça para me deixar, talvez, triste. Ainda sim é melhor do que estar nele e ver ele passar gradativamente até se tornar um daqueles momentos em que eu vazo de mim mesma. O pensamento me causa calafrios e eu peço para o motorista aumentar a temperatura no ar condicionado.

Entro em casa. Fecho a porta por trás de mim sem trancá-la, e tiro os sapatos espalhando sem querer as palmilhas pelo corredor. O momento na cafeteria novamente me vem a cabeça. Porque diabos eu não consigo simplesmente deixar de pensar nas coisas? É irritante. Eu me prendo em mim mesma e nas minhas ideias incontrolavelmente. Por que estou sempre gritando na minha cabeça. Prestes a vazar do momento.

E então, depois de um xícara de chá e algumas muitas palavras sozinha, eu saco o tal espelho preto. Um celular grande demais para minhas mãos que já me acompanha a algumas dúzias de meses. “Talvez eu queira ficar triste”, entendo. Não aquele triste que se quer deitar na cama e se afogar nas próprias lágrimas como Alice. Nem a depressão histérica que não só te joga no chão, mas te faz questionar a existência como um todo – como eu faço com os momentos, mas em uma escala menor -, não. Um ficar triste que só significa que eu entendi melhor como a minha voz fala tão alto na minha cabeça, e porque ela fala. A mesma sensação que me faz querer escrever livros, e cartas, e contos e bilhetes para deixar escondidos. A vontade de que me leiam. A tristeza que me faz ser arte.

Esse conjunto de sensações que só pode ser experienciada em sequências: momentos perfeitos, dúvidas, entendimentos e então processos; pois são esses ciclos que talvez criem as memórias que não fogem da gente em alguns instantes. E só eles podem ser escritos, posteriormente, na arte que me é mais sagrada. De um jeito estranho, eu agradeço por querer ficar triste nesse processo, e dou risada.

Talvez tristeza nem seja a palavra.

Talvez a minha própria voz na minha cabeça seja ruim com elas, elas palavras. Mas eu não acho que sou. Pelo contrário. Juntas nós entendemos como as coisas funcionam aqui em baixo.

Meus olhos estão sorrindo muito grandes no meu rosto enquanto eu falo dentro de mim mesma.

Está é mais uma crônica escrita por Letícia Wexell. Você pode encontrar todas elas clicando aqui.

Créditos da arte: Birgit Stern

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